Hoje as pautas coletivas estão presentes na mídia e nos debates políticos. Sair às ruas, denunciar situações e pessoas por injúrias e preconceitos, lutar pela preservação da terra e combater o racismo estrutural de cada dia são ações que movimentam a sociedade civil. Manifestar-se é nosso direito garantido em lei! Na batalha de narrativas que tem como campo a cidade de São Paulo, é preciso estar atento para que dicções reacionárias não silenciem a luta daqueles marginalizados pela tradição capitalista, branca e patriarcal.
Memória da Resistência traz uma diegese que “vem antes”. Dedica-se à história menosprezada pelo viés político-econômico de anos anteriores aos 1990. Circundamos a Constituição de 1988 (a Carta Cidadã) para nosso recontar. Queremos mostrar os que vieram antes desse marco; aqueles que, muitas vezes, tiveram suas memórias apagadas. Não queremos perder as raízes do debate social – os que abriram o caminho necessitam de reconhecimento. Aqui, diga-se que o conceito de ancestralidade primeiro passa pelas vidas de nossos pais, mães e avós.
Nesse sentido, Memória da Resistência, longe se ser una, é pluriversal e polifônica. Em quatro unidades do Museu da Cidade de São Paulo abordam-se as memórias, os atravessamentos e as (re)-existências de mulheres, negros, indígenas, população LGBTQIA+ e, por fim, as primeiras preocupações com as áreas verdes na cidade de São Paulo. Aliás, a cidade envolve nossos agentes históricos, coloca condicionantes e torna-se o cenário-manifesto. As mostras dedicadas a cada uma dessas memórias e resistências são independentes, trazem as marcas históricas de seus atores sociais, mas elas também se comunicam e mostram pontos de convergência, em que não há distinções e categorias – só as impostas graduações de exclusão.
Para recontar essas memórias, assumimos o caráter documental da mostra. Recorre-se aos jornais (de grande circulação), mas sobretudo à imprensa alternativa, que nos anos de ditadura (1964-1985) tornou-se espaço de liberdade. São fotos jornalísticas, manchetes e charges que nos levam pelo tempo e que nos confrontam com vocábulos, referências e ideias transformados na luta diária. Dois outros recursos são as frases daqueles que vivem e pensam sobre as questões que tangenciam as mostras e as obras visuais que transitam entre o agora e as memórias.
Além da discussão sobre o direito à cidade, acendemos a discussão sobre a forja da memória, como o evocar dos nomes de logradouros, bairros e monumentos como homenagem aos indígenas – algo falseado pelo “contar do branco” (o que está ali é uma representação e não de fato os povos originários) –, um pensamento que julgamos adoecido. Nesse processo de regaste das memórias, sabemos que há muito a se contar, eventos que ficaram para trás, mas um princípio está posto às novas gerações e a novas interpretações: são muitas as formas de resistência, desde o ato de reagir à ação do outro ao ato renitente de simplesmente existir. “Eles quiseram nos enterrar, não sabiam que éramos sementes.”
Alecsandra Matias
Curadora
©Raquel Santos, 2021