Resistências imateriais
O paradoxo está posto desde o momento em que se entra no local da exposição. Carlos Uchôa trata do imaterial e do contingente usando um dos elementos mais resistentes fabricados pelo ser humano: o aço. As paredes de taipa de pilão que abrigam esta obra de arte são, ao contrário, de evidente fragilidade – embora aço e taipa compartilhem o mesmo óxido de ferro que os tinge. Que pode ser pigmento e estrutura, vermelho orgânico (como o sangue, que também o possui) ou mineral. E aí reside um dos aspectos essenciais da percepção da poética da obra.
A instalação se revela em diálogo sensível com a arquitetura frágil do espaço onde está inscrita, metáfora perfeita do humano. Se na terra da taipa essa técnica arcaica de construção se revelou, com o tempo, carente de remendos em alvenaria e tijolos, há solidez na fina lâmina de aço, que se eleva até superar a altura humana e apontar para o que está acima e através do óculo, da abertura circular na parede.
O que distingue os torrões de óxido de ferro das lâminas de aço? A têmpera, ou seja, a força que resulta da passagem pelo fogo. Carlos Uchôa faz aqui, como sempre, uso competente e certeiro dos fundamentos estéticos de raiz conceitual que caracterizaram sua formação e estabeleceram suas opções de linguagem, tanto na pintura quanto na escultura e na instalação.
Há exatamente 20 anos, nos anos 1980, Uchôa soube explorar as propriedades dos materiais para extrair deles significados simbólicos capazes de estruturar significados nítidos. Foi assim que, há exatos 20 anos, em 1999, também na Capela do Morumbi, ele criou Infinitos, instalação de referência obrigatória quando se analisa a produção de arte sacra contemporânea no Brasil: houve ali uma nítida mudança de paradigma.
Em Infinitos, a pesada e óbvia figuração que costuma acompanhar a arte sacra convencional foi substituída por sutilíssima reunião de pedras, tubos de cobre suspensos do teto e panejamentos de véus brancos, semitransparentes e leves, que articulavam o espaço. Ao penetrá-los para ver o conjunto entremostrado por sombras no tecido, o deslocamento de ar ou o toque do visitante fazia com que os tubos de cobre batessem nas pedras colocadas próximas a eles, no chão, produzindo o som de sinos. O som foi o único elemento a aglutinar o conteúdo e remeter a seu significado essencial e imaterial: a busca da transcendência e do sagrado.
Em Sursum corda, a instalação atual, novamente temos a abordagem do imaterial, mas a pesada estrutura que protagoniza o espaço expositivo enuncia que o foco agora está nas questões terrenas, no sofrimento de carne e osso. É algo que poreja sangue, tal como parece sugerir a textura rugosa desse tipo especial de aço. O conjunto inclui um grande espelho, na parede, ao final da perspectiva ascensional do aço. Acima dele e do óculo está o dístico, em neon, sursum corda (em latim, corações ao alto). O conteúdo poético, porém, é bem mais amplo e ecumênico do que pode encerrar essa frase extraída da liturgia católica. Ele aponta para a necessária vontade de transformação que habita todo ser humano, independentemente de crença ou contexto cultural.
Na atualidade de um país fragilizado em fundamentos da cidadania e das noções mais básicas de humanismo, a superação e a transformação é um imperativo vital. A violência e o uso abusivo do poder instauraram uma necrocracia, o império da destruição, do aniquilamento do outro e da banalização da morte. “Vamos adiante dessa violência e negação de vida que estamos vivendo”, conclama Uchôa.
Trata-se de um desafio de superação: sair do nível zero a que os valores humanos estão reduzidos e atingir, para além da contingência, a fortaleza de espírito que abre caminhos. O ser humano se saber agente ativo de transformações interna e externa é o primeiro passo para perceber aquilo que se poderá alcançar no coletivo. Afinal, o caminho de Sursum corda não é estreito nem exclusivo: é uma perspectiva feita de linhas que se unem no infinito.
Angélica de Moraes
Sursum Corda – Carlos Uchôa
Capela do Morumbi | Museu da Cidade de São Paulo
Av. Morumbi, 5387 – Morumbi, São Paulo – SP
24 de novembro de 2019 a 19 de junho de 2022
Terça a domingo, das 9 às 17h.
Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.
Serviço educativo disponível
Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com
©Luccas Villela, 2019