Patrimônio incerto

Exposição de Beto Shwafaty na Capela do Morumbi

Beto Shwafaty é um artista de sólida formação no campo da arte e fez os seus estudos no Brasil, na Alemanha e na Itália. Ele atua na intersecção das diferentes linguagens das artes visuais. A produção de obras de natureza híbrida e multidisciplinar inclui vídeos, instalações, esculturas, objetos, intervenções urbanas, curadorias, publicações e textos.

O seu trabalho objetiva provocar a reflexão sobre os processos de modernização e progresso, com relação às heranças históricas e coloniais e ao capitalismo. Isso envolve o pensar sobre povos originários, trabalho escravo, monoculturas, processos de industrialização, histórias de massacres, expropriações e genocídios. Ou, ainda, catequeses culturais e religiosas e sobre a falta de planejamento urbano em cidades como São Paulo. De que maneira as cidades se estruturam durante o passado colonial no Brasil? Quais os legados, os prós e os contras das ações de modernização que se sucederam em nosso país?

Focada nos cruzamentos entre justiça social e questões ambientais, a sua obra estabelece conexões imediatas entre os impactos gerados pelo desenvolvimento tecnológico e as alterações climáticas, entre sociedade e cidades, migrações e construções urbanas.

Uma das vertentes do trabalho de Beto Shwafaty articula-se em diálogo com a arquitetura da esfera pública e com o design, não somente como denúncia, mas para evidenciar urgências, tais como a reparação das consequências que o “avanço tecnológico” e o “progresso”, tônicas das pesquisas e dos discursos da modernidade, geraram ao longo dos séculos.

Ao pensar esses processos em que a cidade de São Paulo se inclui, o artista aplica esse raciocínio crítico à instalação agora apresentada na Capela do Morumbi, onde novos assuntos foram engendrados para abordar questões como patrimônio incerto ou indefinido, história, o Antropoceno, arquitetura, colonial ou não?

No caso da Capela, desconhecemos qual teria sido o destino inicial de sua construção. Encontrada em ruínas antes de ser restaurada pelo arquiteto Gregori Warchavchik, ela configura um patrimônio indefinido na cidade. A despeito de uma história inacabada, quantas novas histórias podem ser contadas, quantas ficções, quanta especulação pode ser atrelada a esse desamparo da história?

“Patrimônio incerto”, na Capela do Morumbi em São Paulo, 2024, abrange vários focos socioculturais, a despeito do que vivenciamos em situações “próximas e urgentes”, diz Beto Shwafaty.

Várias narrativas resultam de uma investigação artística incansável, pois Beto precisou pesquisar muito, para contornar uma série de questões relativas à conservação do patrimônio, para configurar a mostra. As obras aqui apresentadas passaram pela análise de viabilidades técnicas e de produção em relação à arquitetura e à preservação da Capela. Elas desvelam uma trama complexa entre economia, sociedade, culturas e natureza. Essas questões estão refletidas nas obras “Embargo”, “Nem sempre novos ares são bons ares”, “Capital natural” e “Expectativas futuras”, compondo camadas múltiplas, por vezes invisíveis.

Uma grande corrente com uma talha está suspensa ao fundo da capela. Cordas sustentam a obra formando desenhos com curvas no chão. A corrente de grande porte, instalada na dimensão dos nossos corpos, nos coloca diante da ideia de um passado, que envolve a força do trabalho humano como medida produtiva e unidade de consumo. E ainda nos remete a navios ou a situações em que escravos eram acorrentados.

São imagens mentais que provêm de uma história mal contada, de filmes, de livros ou de artistas viajantes, como Debret, que retratou a vida e o cotidiano brasileiros durante a colonização. Elas estão em nossas mentes e povoam o nosso imaginário. Elas são o elo com uma natureza que sustentou esse ciclo, elo este que fica visível na exposição, pela escolha de materiais naturais, como as cordas de sustentação de juta, sementes ou grãos.

Outra camada intrigante é a obra “Nem sempre novos ares são bons ares”, que evoca o que está visível e o que não está visível nas imagens e transparece na instalação, para criar metáforas sobre o clima. De volta à dimensão do corpo humano, o clima ambiental e o clima social se mesclam: rolou um clima, diz Beto Shwafaty, criando uma atmosfera que articula natureza e humor. A obra faz uma ligação entre 1888, ano da abolição dos escravos, e o ano de 2024.

O artista pesquisou qual era a condição meteorológica de 1888 e a de agora, criando um arco de tempo que fricciona a ideia de clima e natureza entre as duas épocas. O trabalho está alocado em uma vitrine, com um aparato técnico que busca replicar as condições de temperatura e umidade da média climática de 1888.

Como a vitrine tem aproximadamente 1,90 metro de altura, ela fica corpo a corpo com o visitante numa sala ao lado da nave da capela. Pequena para as medidas da obra, o que dá ao público a sensação de aperto diante da imagem de seu corpo refletido na vitrine. O encontro da imagem do espectador com o aparato técnico traz a dimensão de manipulação do clima ambiental, metáfora que se expande para a ideia de que o clima social também pode ser manipulado. A obra tem a intenção de criar consciência de que os climas estão sujeitos a manipulações que não são passíveis de controle. Eis as camadas visíveis e invisíveis nos projetos de Beto Shwafaty, que o espelhamento da vitrine intensifica.

A obra “Expectativas Futuras”, realizada com grãos de café, moedas fora de uso, conchas de búzios, dentes de resina e pedras, está alocada na nave da Capela. Ela integra os conteúdos que se referem à monocultura e ao avanço do capital em São Paulo. Os materiais que compõem a obra articulam com clareza as relações agricultura – capitalismo, terra – território, plantio – monocultura e sinalizam a existência de um eixo de exploração que permeia o universo agro.

Durante o processo de desenvolvimento da exposição “Patrimônio Incerto”, vários diálogos foram travados entre artista e curadora a respeito de monoculturas como a Soja e sua manipulação pelo homem, pois esse grão é o carro-chefe da economia agrícola no Brasil. Ausente na mostra devido ao vazio sanitário – período em que não se cultiva a soja –, sua memória interessa ao artista como metáfora e materialização dos ciclos de exploração e consumo agrícola, que caracterizam as monoculturas no Brasil.

Embora a Soja pensada pelo artista anteriormente para compor a mostra esteja fisicamente ausente, a agropolítica e as questões de biopoder estão claras nas obras expostas. Elas aludem à relação valor versus destruição e iluminam o ciclo vicioso e capitalista de “extração e acumulação primitiva pela voracidade do consumo”, conta Beto.

“Capital Natural” – que denomina mais uma obra, é um termo utilizado pela ONU desde os anos 1970 para descrever elementos da natureza que proporcionam benefícios importantes, chamados de serviços ecossistêmicos. 

Considerada como uma fonte de capital renovável, corresponde às necessidades de renovação de recursos naturais, para a manutenção do fluxo da vida. Com a forma de um canteiro de semeadura de várias espécies como plantas pioneiras, agrícolas, frutíferas e selvagens, a obra configura um campo de liberdade para a coexistência de diferentes espécies da natureza. Não haverá intervenções humanas nesse canteiro ao longo da duração da mostra, para permitir que a natureza flua.

Diante dessas narrativas e desses materiais articulados, vale indagar de que forma as nossas heranças culturais incidem na formação de tecidos sociais, espaciais, culturais e públicos na atualidade? Quais os impactos da ação do homem na natureza e no meio ambiente?

Nesta exposição, os binômios tecno-científico e progresso-destruição são vistos como forças que alteram o meio ambiente e as relações socioculturais. Eles estão presentes como metáforas, como resultado do processo moderno-colonial que incide sobre patrimônio e história. As pesquisas de Beto Shwafaty enriquecem não apenas o propósito da existência desta capela, à medida que o artista a guarnece com mais uma vida e com ativações, mas também com o vislumbre de se cravar mais uma razão de ser da arte. Talvez aqui encontremos um tempo para refletir sobre as possibilidades  de mudarmos o rumo dessa história.

 Daniela Bousso
curadora

©Patrimônio incerto. Capela do Morumbi/ MCSP, 2024.

Patrimônio incerto – Beto Shwafaty

Capela do Morumbi | Museu da Cidade de São Paulo
Av. Morumbi, 5387 – Morumbi, São Paulo – SP

23 de junho de 2024 a 20 de outubro de 2024
Terça a domingo, das 9 às 17h.

Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.
Serviço educativo disponível.
Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com

  

©Patrimônio incerto. Capela do Morumbi/ MCSP, 2024.