Eu entreguei o que era dela: “Toma, Senhora dos Raios, leva daqui essa carcaça, esse egum da mentalidade colonial e racista que inda sibila entre os vivos”. Kaiongo sorriu outra vez, cúmplice, e desapareceu soberana na noite sem lua. (SILVA, 2022. p. 38)¹
Em Exuzilhar, Cidinha da Silva brinca com dois termos – Encruzilhada e Exu – evocando as energias que desses nomes fluem para traçar, através da linguagem, uma estratégia de recuperação da memória do povo negro. Entregar a carcaça da mentalidade da colonialidade é, para as artes visuais, confrontar o arquivo que chamamos de história da arte brasileira. Arquivo esse que, durante séculos, consolidou uma gramática racializada de representação e, com ela, quais seriam os lugares de pessoas negras e indígenas na formação da nação brasileira.
Essa história da arte, com suas pinturas, esculturas, arquiteturas, nomeações e seus conceitos, serviu para apagar pluralidades e orientar, através da visualidade, a realidade. Só que a memória, esse incontrolável poder, resiste e reinventa formas de deixar ver presenças incontornáveis.
Jaime Lauriano recupera paisagens, rastros, códigos e signos historicamente associados à negritude, enfrenta o arquivo e o cruza, como quem atravessa a Kalunga Grande, sacudindo e transcodificando imagens, lutas e ritos. Ao enfrentar em 2023 o Panorama da Cidade de São Paulo, pintura de 1821 de autoria de Arnaud Julien Pallière, Lauriano revolve ruínas e revela uma genealogia do autoritarismo brasileiro. Suas colagens materializam o passado-presente que a cidade de São Paulo, essa cidade-testemunha, reencena e reafirma cotidianamente. Enfrenta o traçado urbano, o léxico da cidade e as formas de ocupação desse espaço.
Há camadas de história, lutas e apropriações, assim como existem camadas de calçamento, ladeiras, nomes e passagens.
Mas, para além das camadas de violência e história, Jaime Lauriano, em atitude de insurgência, é capaz de fazer enxergar o que sempre existiu, mas que não estava à disposição apenas dos olhos. Na sua fabulação e visão de futuro, o artista busca um fundamento por meio das imagens. Se na travessia somos assombrados pelos fantasmas do Beco do Pinto, na transcodificação, na subida e no retorno já não nos deparamos como a mesma cena. No movimento daquele que visita sua obra, na passagem-caminho-história, o Panorama da Cidade de São Paulo também se movimenta e tem, em sua constituição, a presença dele que confunde a binariedade do sistema colonial, que gargalha e festeja no que é ruína e cruza o tempo no risco de pemba.
Toma, Senhor das ruas, através de ti os caminhos da história também são nossos.
LORRAINE MENDES
¹ SILVA, Cidinha da. Exuzilhar. Rio de Janeiro: Pallas, 2022
©Panorama da cidade de São Paulo, de Jaime Lauriano. Beco do Pinto, 2023.
Panorama da cidade de São Paulo – Jaime Lauriano
Beco do Pinto | Museu da Cidade de São Paulo
Rua Roberto Simonsen, 136 – Sé – São Paulo – SP (próximo à estação Sé do metrô).
7 de outubro de 2023 a 28 de julho de 2024 [PRORROGADA!]
Terça a domingo, das 9 às 17h.
Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.
Serviço educativo disponível.
Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com
©Flavio Freire, 2023. Beco do Pinto/ MCSP.