Diálogos no Museu: Reimaginando Museus

O tema escolhido para a 19ª Semana de Museu foi “O futuro dos museus: recuperar e reimaginar”. Por motivo de força maior, entretanto, não pudemos participar do evento, mas faremos nossas discussões neste momento. Importante notar, pois, a própria sugestão do título do evento: não se pode imaginar um museu para o futuro sem recuperar o que ele tem sido – sob pena de se refazer o caminho que já se havia percorrido. Mas, acima de tudo, não se deve desejar um museu com meros avanços em recursos tecnológicos sem se corrigir alguns dos “vícios” que essas instituições possuem. Assim sendo, voltemos ao início.

Etimologicamente, o vocábulo “museu” tem origem no idioma grego (“mouseion”), na Antiguidade, e significa “templo das musas” – que eram as nove filhas de Zeus com Mnemosine, a deusa da memória. Nessa época, as coleções dessa instituição destinavam-se à contemplação e aos estudos artísticos, literários e científicos, mas o foco era mais agradar aos deuses que aos homens. Note-se, porém, que a vocação para salvaguarda da memória já estava presente na significação mítica, o que foi importante para nortear sua ação posterior. Todavia, essa origem também trouxe um problema que marca até hoje a visão que se tem dos museus – tanto para quem nele trabalha quanto para boa parte do público –; é o fato de ele ser considerado um templo.

E onde estaria o inconveniente de ser um templo? A questão é que os templos sacralizam seus objetos e ações e, por isso, as narrativas que divulgam são entendidas como canônicas e, geralmente, como expressão da verdade – e não de uma possibilidade. Afinal, todos os discursos são formulados por pessoas e elas não são isentas nem neutras. Pessoas advém de lugares socioeconômicos, psicológicos e culturais diferentes (para dizer o mínimo), o que torna a comunicação do museu igualmente parcial, saída de pontos de vista limitados – já que não se pode saber tudo –, o que cria vieses ideológicos e, não raro, tendenciosos, mas com pretensão de genuinidade.

De forma análoga à famosa afirmação de Rousseau de que “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente ingênuas para acreditá-lo”, os donos de coleções fizeram crer que o sentido dado aos seus objetos era real e os outros se fiaram nessa alegação. Todavia, se isso tivesse ocorrido de forma generalizada, teria gerado uma diafonia interessante, já que haveria uma profusão de falas concorrentes, formando um mapa conceitual amplo das sociedades. Mas, não foi assim que ocorreu. Já na Roma Antiga, por exemplo, o colecionismo tinha o caráter de demonstração do alto status, de bom gosto e de poder sobre os povos conquistados.

Na Idade Média, para além das coleções principescas, a Igreja amealhou enorme quantidade de artefatos e passou a se utilizar deles como forma de propaganda dos ideais cristãos, selecionando o que podia ser aceito e o que estava proscrito. Tanto que, em 1601, em virtude de Contrarreforma, Frederico Borromeo, o arcebispo de Milão, criou a Academia de Belas-Artes para prescrever a estética aprovada pela Igreja. Somente com o Renascimento, a partir do século XIV, foi possível cultivar uma estética fulcrada no humano, com o retorno aos ideais clássicos. No século seguinte, sob a égide do capitalismo comercial, começa emergir uma classe social, oriunda do terceiro estado, que também vai colecionar objetos para demonstrar seu status: a burguesia. Disto nascem os famigerados Gabinetes de Curiosidades, que estão muito próximos daquilo que se entendeu por museu até muito pouco tempo.

Não há dúvida de que esta é uma imensa simplificação, mas contém o esquema geral do assunto em tela e, por isso, é suficiente para mostrar que tipo de pessoas formaram a história da Museologia: homens europeus, brancos, ricos, colonialistas e religiosos. Nessa esteira, aliás, não se pode deixar de citar os zoológicos humanos, muito difundidos no século XIX e cuja última exposição ocorreu em Bruxelas, em 1958! Conhecidas também como exposições etnológicas, eram espetáculos abjetos nos quais africanos, indígenas das Américas e esquimós ficavam enjaulados, em ambientes que reconstituíam seus locais de origem, como forma do europeu “civilizado” (?) poder conhecer os usos e costumes desses povos tipos como exóticos. Triste nódoa promovida pelo imperialismo neocolonialista e escravocrata, mas que tem o potencial de demonstrar o grande sentido do colecionismo tradicional.

Ou seja, na maior parte do tempo, promoveu-se um discurso único, como se houvesse apenas uma via correta de ser e existir. Entretanto, a Sociologia é pródiga em argumentos que demonstram que as estruturas culturais humanas são construtos artificiais, advindos principalmente de alguma dominação e constrição (estão aí Marx, Weber e Durkheim para corroborar). Isto gerou a subalternidade, o apagamento e até o extermínio de pessoas e das culturas dos povos não europeus. E quando parecer incongruente que um ser humano tenha feito isso com outro, podemos avocar Grada Kilomba ao afirmar, no livro “Memórias da Plantação”, que “o sujeito branco de alguma forma está dividido dentro de si próprio, pois desenvolve duas atitudes em relação à realidade externa: somente uma parte do ego – a parte ‘boa’, acolhedora e benevolente – é vista e vivenciada como ‘eu’ e o resto – a parte ‘má’, rejeitada e malévola – é projetada sobre a/o ‘Outra/o’ como algo externo. O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo”. E isto pode ser ampliado a todo e qualquer outro que se julgar dessemelhante a si.

Entretanto, com o advento da Nova Museologia, cujo grande marco foi a Mesa-Redonda de Santiago do Chile, em 1972, começou-se a repensar a relação do sujeito com o museu. Desse modo, o protagonismo do sujeito na construção de sentidos complexos e biunívocos, com o museu, passou a ser valorizado, em detrimento de um símile não-formal da educação bancária (conforme o entendimento de Paulo Freire). Além disso, o fato museal alicerçado no trinômio homem-objeto-cenário alargou-se para sociedade-patrimônio-território, de modo a abranger as estruturas e vivências locais no fazer museológico, minorando o viés prescritivo em prol de uma mirada participativa. Isso possibilitou que os territórios dialogassem com seus museus, e vice-versa, ensejando maior pertencimento. Todos os museus, então, passaram a operar dessa maneira? Obviamente não, mas a ideia está posta e tem sido reforçada também pela Sociomuseologia, que deseja promover discursos que formem sujeitos mais críticos e emancipados perante a sociedade. Mas ainda há um longo caminho a percorrer.

Em virtude disso, traremos, por meio do Programa Diálogos no Museu da Cidade de São Paulo, e à guisa de participação na 19ª Semana de Museus, duas mesas de debate sobre esses temas que são fundamentais para que os museus do futuro sejam mais descolonizados e inclusivos – em sentido lato –, mas não por obséquio e sim por entenderem que não são instituições descoladas da sociedade e devem, por isso, ceder espaço para as vozes que têm sido caladas por séculos e que têm o mesmo direito à fala, à existência e à cultura.

Para a primeira mesa, do dia 16/07/2021, denominada “Imaginando Museus Decoloniais”, traremos o jornalista e pesquisador de arte Deri Andrade e a Coordenadora de Políticas para a População em Situação de Rua, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, Giulia Pereira Patitucci, para discutir a cessão de espaço de fala e participação dos grupos sociologicamente minoritários e marginalizados. Já para a segunda mesa, do dia 23/07/2021, denominada “Imaginando Museus em Seus Territórios”, traremos a historiadora e educadora Caróu Oliveira e o arquiteto e museólogo Daniel Manjarrés para discutirem a potência de ação que têm as pessoas que estão e agem no território para criarem em conjunto com o museu. Contamos com suas reflexões! Venha participar!

Danilo Montingelli
Coordenador Geral
Programa Diálogos no Museu
Museu da Cidade de São Paulo


Diálogos no Museu: Imaginando Museus Decoloniais (16/07/2021 às 17h): http://bit.ly/museusdecoloniais
Diálogos no Museu: Imaginando Museus em Seus Territórios (23/07/2021 às 17h): http://bit.ly/museusemterritorios
Duração: 120 minutos – com acessibilidade em libras.