Parte da argumentação que o filósofo moderno Thomas Hobbes utiliza, na apologia que faz à adesão ao contrato social, advém da premissa de que os seres humanos não sabem usar a liberdade que possuem. Deste modo, devem aliená-la ao governante/Estado que, por meio de normas, instituições e, principalmente, pelo monopólio da violência, manterá a pacificação social.
Essa foi uma das ideias basilares para a formação dos primeiros estados nacionais europeus e para a consolidação do absolutismo, que chegou ao Brasil por meio da tomada de posse que Portugal exerceu nas Américas. E, como se pode imaginar, dela derivam diversas consequências. Entretanto, é importante trazer lume a uma delas: o fato de se subtrair a liberdade em vez de se dar elementos para que ela seja bem encaminhada. Isso fica assombrosamente claro na famosa frase de Aristides Lobo acerca da Proclamação da República: “o povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada”.
Percebe-se, desse modo, que o povo não havia sido educado ou incentivado o suficiente para participar dos caminhos políticos de sua nação, como nem sequer tinha a condição de entender o que ocorria. O que mais alarma é a utilização do vocábulo “bestializado”, ou seja, animalizado, irracional – não se tratando, por isso, de mera incompreensão, mas de redução às raias da incapacidade. Não é de se estranhar, diante de tal concepção de menoscabo, que o presidente Figueiredo tivesse dito que preferisse o cheiro dos cavalos ao do povo. Isso repercute até hoje, por exemplo, na famigerada “síndrome de patinho feio” que o brasileiro parece sentir diante de outros povos e países.
Mas talvez a sequela mais insidiosa seja aquela que ficou no inconsciente coletivo nacional e subsiste como elemento da cultura: o jeitinho brasileiro que, não raro, descamba em corrupção. O jeitinho brasileiro, conforme explica Sergio Buarque de Holanda, em seu livro “Raízes do Brasil”, é um “meio de transgredir a regras, para não ferir suscetibilidades”. Ele deriva das relações de compadrio e leniência criadas durante o início do período colonial para que o colonizador conseguisse sobreviver no território desconhecido, mas que acabou por se institucionalizar como uma identidade cultural. Desse modo, deixar que o outro tivesse benefício para que pudesse concedê-lo posteriormente, se foi mesmo necessário naquela situação passada, hoje é um atraso para o desenvolvimento de relações sociais equilibradas.
Como corolário das proposições anteriores, nota-se que a cultura brasileira é permeável aos deslizes éticos porque a sociedade não se acostumou a operar em bases éticas nem foi livre para isso. Afinal, liberdade é fundamental para a ética, uma vez que é por meio das escolhas e do aprendizado que elas trazem que se constroem os padrões eticamente sólidos de comportamento. Assim sendo, a ética é antes de tudo um processo, um horizonte no qual os sujeitos procuram orientar suas ações com vistas ao bem comum. Portanto, mesmo o sujeito ético pode errar, mas o que o difere do antiético é que procura reparar o dano e se corrigir. Não se pode olvidar que também que, em todo juízo ético é fundamental levar em conta a existência dos outros indivíduos, de modo a se perceber que, numa sociedade, espaços, direitos e deveres são compartilhados e, por isso, limitantes de algum modo – exatamente para que não se prejudique a ninguém.
Nessa esteira, é fundamental a participação dos museus na discussão das questões éticas, posto seja essa uma entidade que deve trabalhar com e para a sociedade em que está inserida, respeitando suas características e manifestações. Um museu ético não é, portanto, somente aquele que cumpre normas em suas relações jurídicas; é aquele que, principalmente, propõe-se ao debate exatamente para evidenciar os elementos éticos do comportamento humano e ensejar caminhos possíveis de liberdade, que podem vir a corrigir séculos de exclusão. Museus éticos, por fim, são aqueles olham para si mesmos criticamente e transformam narrativas, reformam discursos, reabilitam o que foi injustamente escanteado e entendem que sua função não é mais a de ter a última palavra, mas de ser um oportunizador de educação, pesquisa e desenvolvimento para o crescimento cultural da sociedade.
Visando então a introduzir elementos para a discussão acerca da ética cultural e museal, o Museu da Cidade de São Paulo, por intermédio do seu programa Diálogos no Museu, traz o museólogo Mauricio Rafael e o bacharel em Filosofia Danilo Montingelli para fazerem considerações acerca do assunto, contando com a mediação do bibliotecário João de Pontes Junior.
Danilo Montingelli
Coordenador Geral
Diálogos no Museu da Cidade de São Paulo
Data: 25/06/2021
Horário: 17h
Duração: 120 minutos
Link para acesso: http://bit.ly/sobreetica
Acessível em libras
Imagem da arte: retirada do site pexels.com – foto de Pixabay