Março é, hodiernamente, considerado o mês das mulheres. Este fato já é expressivo, pensando-se que a lembrança costumava ficar adstrita apenas ao dia 08. E por que esse dia? A justificativa histórica é a passeata realizada por mulheres, na Rússia tzarista de 1917, em virtude do estado de miséria em que a dinastia Romanov havia mantido seu povo por 300 anos. Somaram-se a elas outros operários e estava armado o substrato sobre o qual se consolidaria o potente discurso leninista.
A questão primordial, porém, é avaliar se, em mais de 100 anos do ocorrido, houve mudanças suficientes no status quo. Do ponto de vista da vida prática, pode-se dizer que houve alguns avanços; contudo, ainda há necessidade de avanços institucionais e conceituais, em todos os lugares do globo. Afinal, um século é pouco perto de milênios de construção de uma ideia de subalternidade da mulher. Ideia que nasce da sedentarização do dos grupamentos humanos, no Neolítico, quando a mulher passa a sofrer constrição em sua liberdade de ação para que se garantisse a legitimidade dos herdeiros. Ideia que se expande na Antiguidade, por pensarem que a mulher seria um homem com menos calor corporal e força e, por isso, não consegue exteriorizar seus genitais.
Essas concepções do feminino arraigaram-se na malha conceitual das sociedades, criando a misoginia e aversão a qualquer possibilidade de efeminização do homem. Concomitantemente, nasce a noção do macho dominante, que não pode ser objeto para uso de ninguém, quer seja na política (vista como interação social ampla), quer no âmbito privado. Sobre isso, Foucault discorre longamente em sua “História da Sexualidade”. Por outro lado, disso que hoje entendido como masculinidade tóxica, nascem os preconceitos contra as “sexualidades desviantes” – embora não haja qualquer deturpação, tendo em vista que, o que se entende por homo e transexualidade existe, inclusive, em diversas espécies animais.
Para furar a bolha da ignorância subjacente a esses conceitos esdrúxulos sobre o feminino, a filósofa Simone de Beauvoir (1908 – 1986) escreve sua extensa e sólida produção científica (sim, Filosofia é uma ciência com métodos próprios). E o corolário de sua obra está na sua proposição mais conhecida, apresentada no livro “O Segundo Sexo”: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Desta pequena proposição, pode-se tirar ao menos duas consequências imediatas e reveladoras: (1) as características biológicas não são determinantes para que uma mulher seja uma mulher e (2) o conceito de mulher é cultural e socialmente construído e mantido.
Isso significa que possuir seios e vagina não cria a mulher, cria apenas um corpo. É esse corpo que recebeu significados e foi limitado a certos padrões de comportamento, não raro contra a governabilidade e vontade de quem o possui, e foi – e vem sendo – castrado, subalternizado, alienado, vilipendiado e silenciado. Esse corpo foi chamado de feminino em oposição a outro corpo chamado de masculino; não porque essas diferenças sejam abismais, mas porque interessava a metade da humanidade dominar a outra metade. Ou seja, a ideia de mulher – que todas as mulheres reais acabam tendo que manifestar porque foram ensinadas a performarem em um rol de possibilidades aceitáveis – não é uma expressão da realidade, mas uma construção humana, um conceito criado e mantido por tanto tempo que acabou parecendo ser verdade.
Desse modo, tornar-se mulher é viver as dores e alegrias que o conceito lhe permite, até que se consiga criar conceitos melhores e mais próximos do que as mulheres, de fato, sentem ser. É dessa forma que toda vivência como mulher, tudo o que se sente como mulher, tudo o que se manifesta como mulher e tudo o que se sofre como mulher é o que forma a mulher. Por isso há mulheres em diferentes corpos, com diferentes identidades de gênero, com diferentes orientações sexuais, com diferentes cores de pele, com comportamentos únicos, subjetivos, particulares, mas que, no fim, apenas revelam as diferentes formas de ser mulher.
É na esteira dessa discussão, e em comemoração ao mês da mulher, que o Museu da Cidade de São Paulo, por intermédio do Programa Diálogos no Museu, e em parceria com a Coordenação de Políticas para LGBTI, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, traz esta live. Para compor a mesa e abrilhantar a discussão, contar-se-á com as presenças de Cássia P. Azevedo, Luanda Pires, Maria Aline Moreira, Priscila Cardoso e com a mediação de Rosana Santana.
Danilo Montingelli
Coordenador Geral
Programa Diálogos no Museu
Dia 10/03/2020 às 17h
Link para acesso: https://www.youtube.com/watch?v=_oIueHa-Eqs