Como Medida, de Adalgisa Campos

No ano de 1790, a Academia Francesa convocou um grupo de cinco cientistas para o estabelecimento de parâmetros de medição e volume, a fim de evitar as variantes regionais e de interesse pessoal espalhadas no continente europeu. Após cinco anos de investigações, os critérios foram estabelecidos por decreto de lei, no total de seis unidades decimais (metro, acre, estéreo, litro, grama e franco), gradativamente implementadas nas colônias francesas – mas não sem alarde. 

E quais eram os critérios para definição dessas unidades? Apesar de mudanças constantes nessas determinações, um metro, por exemplo, foi considerado como um décimo milionésimo da distância entre o Equador e o Polo Norte, a partir da cidade de Paris – um protocolo de medida não muito distante dos idos medievais, em que uma légua equivalia ao comprimento do dedo do pé de um homem considerado grande, até seu dedo médio, com os membros esticados na vertical e na horizontal. Entre idas e vindas para a consagração dessas medições, chama a atenção o embate geopolítico gerado, pois seus pares britânicos e estadunidenses rejeitaram tais definições justamente pela eletiva de Paris como referência primeira aos parâmetros de medidas (cada país desejava estabelecer-se como referencial, e não há acordo até hoje).

Curiosidades à parte, fato é que tais definições, por mais que se almeje uma universalidade de determinação espacial, são acima de tudo paradigmas estabelecidos para o desenvolvimento do universo científico. Portanto, sua natureza é mais abstrata do que concreta e seus pais fundadores, homens eurocêntricos (como o matemático italiano Fibonacci, ou os religiosos franceses Gabriel Mouton e Jean Picard, os noruegueses Simon Stevin e Christiaan Huygens, entre outros, ao longo da história).

É dessa percepção que a artista Adalgisa Campos tem realizado ao longo de mais de duas décadas a subversão de uma série de protocolos e convenções de esquadrinhamento do mundo, tomando seu corpo (feminilizado, branco, cis) como referencial de dimensão e dando a essa prática o nome de Coleção de Medições

Trata-se de um conjunto de ações de mesura a partir de uma variedade de técnicas e suportes vinculados ao vocabulário formal do desenho, do gráfico, do construto, e aplicadas a espaços arquitetônicos (privados e públicos), que seguem desde recintos expositivos até os locais de residência da artista ao longo dos anos, estendendo-se, vez ou outra, para objetos, itens estruturais dos espaços e seu próprio corpo. Plantas arquitetônicas poéticas, cartografias descentralizadas e simulacros anatômicos tomam corpo gestualmente e adquirem singularidade não apenas pelos métodos e resultados plásticos, mas principalmente por terem sido executados por uma mulher que torce as normativas de delimitação espacial estabelecida patriarcalmente.

O conjunto, em construção ad continuum, fora pouquíssimas vezes exibido, muito devido a seu caráter documental, monumental e processual, e nesta exposição a Coleção não apenas apresenta uma grande parcela de seu arquivo (inclusive indexando subgrupos de trabalho por cores ao sui generis para a artista), mas estabelece um diálogo fortuito com a Chácara Lane, que é integrada como mais uma das localidades da Coleção. Com sua arquitetura eclética do século 19, símbolo do vocabulário ostentatório da elite cafeeira junto aos missionários presbiterianos, o local permite a instauração de camadas entre o “diário” de medições de Adalgisa e a natureza concreta do edifício – que já fora casa, escola, escritório\consultório e hoje é aparelho cultural.

Coleção de Medições é como um grande croqui, uma materialização em escala 1:1 sobre os processos da artista, de negociação entre o corpo e sua materialidade com os espaços de vivência, salientando ali tanto os aspectos biográfico, afetivo, de marcação temporal da memória, mas também o âmbito das práxis de organização espacial – e, consequentemente, o também impulso moderno de controle do mundo.

Talita Trizoli
Curadora

©Adalgisa Campos, Coleção de Medições do tamanho do corpo, 200 x 200 cm, 2021. Acrílica e grafite sobre lona.

Como Medida | Adalgisa Campos

Chácara Lane | Museu da Cidade de São Paulo
R. da Consolação, 1024 – Consolação – São Paulo – SP (próximo à estação Mackenzie do metrô)

25 de novembro de 2023 a 28 de julho de 2024 [PRORROGADA!]
Terça a domingo, das 9 às 17h.

Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.
Serviço educativo disponível.
Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com

  

©Adalgisa Campos, Coleção de Medições, 1999 –2023. Desenho digital.