Reabitar, reordenar com possível retomada
Andrey Guaianá Zignnatto é herdeiro de avós indígenas silenciados inicialmente pelas forças coloniais e, posteriormente, pelos próprios tijolos, casas, prédios que formam as cidades grandes como São Paulo. Artista autodidata, professor de artes visuais e ativista de projetos sociais, trabalhou como ajudante de pedreiro dos dez aos 14 anos de idade. Descendente de povos Tupinaky’ia e Gûarini. Essas memórias afetivas ancestrais são a base para o desenvolvimento conceitual e dos métodos usados na sua produção artística.
Na atual condição, em que muitos territórios indígenas foram cobertos de concreto, é difícil pensar na ideia de um lugar para fazer fogueira no contexto urbano, costume tradicional dos povos originários para formar o espaço educativo e transmitir conhecimentos ancestrais por meio da oralidade, dentre muitos outros de seus valores violados e enterrados nesses territórios. Por esta razão, quando indígenas que tiveram seus universos culturais apagados decidem pelo processo de retomada de suas ancestralidades, apesar de este processo partir dos simbolismos, eles transcendem meras questões simbólicas. A expressão de sentimento de pertencimento se constrói no campo das imagens, das narrativas, das memórias, para um lugar de vida e espiritualidade.
Zignnatto começa sua trajetória como artista apoiado em suas memórias da época em que trabalhou como pedreiro e nos conhecimentos adquiridos com essa profissão. Em seus trabalhos mais recentes fica evidente o deslocamento do artista das questões sobre a construção civil para questões de sua ancestralidade indígena. É possível observar nos trabalhos apresentados na exposição elementos que demonstram o esforço do artista em reordenar seus pensamentos nessa trajetória, do contexto urbano para o contexto indígena, esforço este para equalizar as forças desses universos tão distintos. Neste sentido, é possível afirmar que o artista, como tantos outros artistas indígenas contemporâneos, encontrou na arte e suas potências poéticas instrumentos que têm colaborado para imaginar e efetivar esta possível retomada e reabitar o Tekoha (onde se produzem modo ser coletivo), o lugar originalmente organizado e habitado por povos indígenas, espaço de produção de conhecimento para resguardar o direito ancestral.
É importante aqui também alertar para os riscos e cuidados necessários para nós, indígenas, que sofremos constantemente da perspectiva colonizadora ainda muito presente em abordagens sobre questões dos povos originários. Cuidados esses para não romantizar em demasia a ancestralidade, como se o Brasil fosse “descoberto”, como se as populações indígenas de diversas etnias fossem “civilizadas” passivamente, e essa invasão colonial. Daí a importância de os indígenas que foram silenciados se colocarem em evidência, como também uma reação dos povos originários que sempre lutaram para resistir à invasão. A proposta deve demonstrar como a ficção também é um importante dispositivo nessas retomadas político-identitárias, à semelhança do que, como denunciava Oswald de Andrade, o foi/é para a colonialidade. Não se trata, portanto, de pensar o prefixo re como um resgate ou um retorno a um ponto supostamente anterior à invasão colonial. Por isso é relevante pensar o espaço expositivo de obra de arte indígena, que não é qualquer obra.
A obra de um artista indígena é uma obra que vem da tentativa de tradução da luta indígena em prol do território físico e também do espaço subjetivo do pensamento. Essa obra é muito especial por conta disso, porque ela traduz esse movimento de resistência, de sobrevivência e de expansão nesses espaços. Ela não é apenas um simples objeto, mas o resultado de um saber ancestral e transcendental. Essa obra é uma tentativa de tradução de pensamentos e da criatividade coletivos, que não devem ser vistos como apenas de um indivíduo, o artista. A importância do coletivo para o indivíduo e do indivíduo para o coletivo é essencial na arte indígena. Nunca estamos representados na arte apenas por um indivíduo. E essa obra criada pelos artistas indígenas aparece de uma forma que recoloca esse pensamento acerca do indivíduo dentro de um todo e da relação desse individuo com esse todo. Não existe uma obra indígena sem esse encontro e esse conhecimento que é produzido pelo coletivo. A obra é materializada pelo indivíduo, mas o pensamento é um processo que ocorre no coletivo. Apesar de a obra de Andrey falar do processo histórico de sua família, ela fala também por todos os demais indígenas que foram soterrados nas cidades por toneladas de concreto e indiferença.
É difícil encontrar nas palavras um meio para explicar tudo o que é único e especial, o que é transcendental, que está diretamente associado aos seres da terra. O corpo, os relacionamentos sociais, o bem-estar, o bem viver são intimamente relacionados aos elementos do entorno, a própria sociedade, os elementos da terra, da mata e animais, os espíritos. Não é possível no pensamento indígena desassociar essas relações. E é na arte o meio que o indígena encontra uma forma de traduzir as complexidades dessas relações.
É necessário que os juruás (não indígenas) compreendam outros modos de pensamentos, esses diversos olhares indígenas. A arte indígena é mais um alerta na tentativa de diálogo entre os povos indígenas e esses juruás, que lhes oferecem outras formas de enxergar para além das enormes paredes de concreto e pisos de asfalto, e ver aquilo que nos une numa relação de respeito como humano, e, juntos, o que nos une com o não humano numa relação respeitosa também com os Ijás do Rio, Ijás da Mata, os guardiões, o espírito da terra, o espírito da floresta, o espírito das árvores. Estas são algumas reflexões que podem ser encontradas nas obras de Andrey Guaianá, que fazem parte da exposição CO YBY ORE RETAMA.
Sandra Ara Rete Benites
Curadora
CO YBY ORE RETAMA, de Andrey Zignnatto
25 de setembro de 2021 a 24 de julho de 2022
Solar da Marquesa de Santos
Rua Roberto Simonsen, 136 – Sé – São Paulo – SP (próximo à estação Sé do metrô).
25 de setembro de 2021 a 5 de junho de 2022
Casa do Sertanista/ Caxingui
Praça Ênio Barbato, s/nº – Caxingui – São Paulo
Terça a domingo, das 9 às 17h.
Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.
Obrigatório o uso de máscara.
Serviço educativo disponível.
Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com
©Monica Caldiron, 2021