CO YBY ORE RETAMA [Esta Terra é Nosso Lugar]

O grande pensador contemporâneo indígena Davi Kopenawa fala sobre um céu que está em situação de queda. Outro tão importante pensador indígena, Aílton Krenak, fala sobre como encontrar meios para adiar o fim do mundo. Ambos discutem nesses pensamentos questões sobre o contínuo processo de extinção dos povos originários e seus universos ancestrais que habitam os territórios hoje conhecidos como continentes americanos. 

Mas e quando o céu já foi derrubado e o mundo já foi extinto, o que fazer? 

Eu sou artista descendente, por parte de pai, dos povos Tupinaky’ia Guaianás, que habitaram os territórios onde hoje é chamado São Paulo. Etnia indígena que sofreu apagamento total de seu universo ancestral. O que restou desse povo e seu universo são alguns relatos em textos produzidos por seus colonizadores. Por parte de minha mãe, descendo dos Guarani Mby’a, povo que me tem auxiliado num processo pessoal de retomada como aba [homem] indígena. Apoiado sobre essas poucas memórias que me sobram como herança, na arte e suas muitas potências,  esforço-me para desenvolver um processo de reflorestamento do universo ancestral de minha família, e esse esforço se inicia no território de meu próprio pensamento e espírito. A reconstrução desse Tekoa* toma forma em cada trabalho produzido durante essas pesquisas, e pode se expandir para muitas dimensões durante cada exposição na experiência do contato entre o público e cada trabalho. 

CO YBY ORE RETAMA [Esta Terra é Nosso Lugar], título da exposição no Museu da Cidade de São Paulo – Solar da Marquesa de Santos, local exato onde antes do período colonial paulista foi Inhapuambaçu, aldeia Tupinaky’ia, é o retorno de um Tibiriçá ao lar original de sua família, mesmo que desta vez por um curto período, onde muitas outras pessoas são também generosamente convidadas para habitar este lugar, este Tekoa, território físico, mental e espiritual. Os trabalhos nela expostos podem também ser considerados um meio de demarcação indígena tanto do espaço físico da mostra, do circuito das artes visuais, do território subjetivo da arte e do imaginário de cada pessoa do público presente na exposição. 

Considerando minha experiência pessoal como artista, avalio o processo artístico, desde a manifestação da ideia, como sendo um momento em que o artista se vê tomado por um certo tipo de furacão com suas muitas potências, suas formas irregulares e destino indefinido. Já a produção dos trabalhos artísticos vem como um esforço para construir algo que faça algum sentido, juntando os escombros deixados no caminho por esse furação. Arrisco dizer que esta é uma situação muito semelhante de estado, quando penso sobre todo o esforço dedicado para reconstruir um universo ancestral devastado pelo furacão colonizador. 

A arte é o meio possível que encontrei para equalizar forças de universos muito distintos, as memórias afetivas de minha vida urbana e de minha experiência como pedreiro participante da construção de cidades, com minhas memórias ancestrais indígenas. Essa equalização só foi possível quando percebi que era também necessário me colocar nesse processo de certa forma desarmado e suscetível no trânsito por esses caminhos poéticos, da fusão desses universos para este mundo reinventado. 

É possível afirmar que tanto a arte como os conhecimentos indígenas são em geral considerados irrelevantes pelas sociedades contemporâneas. E justo este mundo onde essas sociedades vivem sob grande tensão submetidas a violentos processos de sufocamento, quem sabe isso que hoje é ignorado possa oferecer novas propostas para gerar momentos em que as pessoas encontrem ao menos um lugar para tomar fôlego. Espero que a exposição CO YBY ORE RETAMA possa servir como um desses lugares, e compartilhe anga [ânimo – alma] com o público que por ela passar. 

*TEKOA, literalmente, significa o lugar do modo de ser guarani, sendo esta categoria modo de ser (tekó) entendida como um conjunto de preceitos para a vida, em consonância com os regramentos cosmológicos herdados pelos antigos guaranis.

Andrey Guaianá Zignnatto
Artista

©Monica Caldiron, 2021